Como se fosse

Eu te apresento minha alma, alva e pura, mas calada. Em silêncio, pois já dormem os segredos. É como se fosse morta, mas no fundo ainda revolve ali um gérmen de vida. Observe por um momento e verá que mal se move. É como se fosse pedra. Olha sempre para frente, com olhos cegos fitos num ponto perdido. Acho que enxerga o que deseja, porém nunca terá. Espera, portanto, que venha. E não vem.

Outro dia abriu a boca, por sede, fome ou pelo grito que não saiu. Fechou-a em seguida como que alimentada. É um espectro de qualquer coisa que se assumiu vazio e não luta contra isso. Sinto pena. É como se fosse morta, mas é somente inerte. Perdeu a vida que ali havia e hoje é noite mal dormida e luto não chorado. Sobrevive de passado e de dores não saradas, espiando seus desejos sem deixar-se ver.

Contemple também que esconde imundícies. Lá na barra das vestes brancas ou nos dedos contraídos. É como se fosse podre, mas é suja. Alma mal cuidada. Parece, ao meu ver, que tem vergonha de ser em parte lixo e lhe falta a coragem de banhar-se. Diz-se que cansou de mergulhar nos rios e sujar-se na lama das margens.

Ela tem um nome que não sei, mas atende por qualquer chamado. Move os olhos lentamente e volta a perdê-los no nada. Sente algo que não conheço, mas consigo medir. É como se fosse dor, mas deve ser saudade.

De certo modo falou-me hoje cedo, pedindo de alguma maneira, que eu não a visse moribunda, nem faminta ou desolada. Pediu-me que a visse como antes, que sentisse por ela um algo mais que esta curiosidade sobre o seu suplício. Queria receber de mim, ou de quem quer que fosse, um sentimento incondicional, paciente e infinito, como se fosse sublime e necessário, como se fosse amor. Eu, assustado, neguei.

Deixe um comentário