Atlas caído

Perdão pela falha, mas eu não suporto carregar o mundo. Tenho a idade me enervando as pernas, o cansaço de quem já andou demais. Curvo-me sem perceber. Sou arco sem corda, cuja flecha já foi há muito disparada, cuja aljava escondeu-se bem longe, em outro tempo, outro lugar.

Minha vontade é de te carregar nas costas, como a um corpo que já morreu e merece seu descanso na cova distante. Minha vontade é te ter pele a pele comigo, mas infelizmente não sou capaz. Um mundo pesado, eu diria, sobre as costas de quem não aguenta erguer-se corretamente. Olhe você para mim agora e veja que estou caindo. A cada passo, a cada fôlego, já encaro o chão com um olhar de quem o deseja.

Guarde contigo a longa caminhada. Nossa jornada até aqui. Foram séculos infindos de passos que dei no vazio, sem um rumo certo quando achei que iríamos a algum lugar. Foram os anos da juventude, quando as pernas eram fortes e as costas suportavam você. Você que é meu mundo, mas não me deixa entrar.

Tudo isso, na verdade, é tão curioso quanto desolador. Você, meu mundo, tem suas praias e planícies, suas relvas e florestas, montanhas. Você tem aí dentro meus lugares favoritos, a ânsia dos meus últimos dias regada a toda a paz que preciso. Logo eu, que te trouxe nas costas até aqui, estou parado à sua porta. Um inquilino proibido por ser grande demais. Sim, eu sou maior que você e talvez esta seja minha bênção tanto quanto minha maldição. Sou amaldiçoado por não disfrutar de você por inteiro, por não te ver com toda a majestade e imponência que você deve ter; mas sou também abençoado por saber que posso te deixar aqui como quem larga um fardo e segue em frente, errático pela estrada que já me guiava desde antes de você chegar.

De tanto carregar o mundo nas costas, deixei de ser eu para ser o seu pilar sustentador. Quem sou eu agora, sem você? Um pilar que nada sustenta, uma peça pela metade? Talvez um velho corcunda e cansado, cheio de memórias de uma caminhada heroica e vazia. Talvez um deus vagante, com as costas dilaceradas, em pleno processo de recriação.

Sou sozinho, sem mundo, sem tudo, na busca infinita do que carregar comigo.

 

 

Imagem: Atlante (1646), por Giovanni Francesco Barbieri detto (Guercino).

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