O livro que ainda não li

Não condense nas gavetas as palavras que já te dei. Sublime-as, com janelas abertas, e deixe que inflem as cortinas. Disfarce minha chegada, como sempre fez, e finja que sou outro e não aquele que te lê do avesso. Sou eu quem te decifra – do braille ao sânscrito, em todas as nossas línguas – sou eu quem te tem nas estantes da alma, em todas as edições, juntando o pó das visitas que nunca recebi.

Sorria o riso das visitas, faça-me sala enquanto sento no sofá. Eu te encaro como antes, tentando expulsar daqui a névoa que nos separa. Tudo é turvo e estranho. Até a tua voz mudou. O hálito que sai da tua boca, como espírito liberto e lânguido, está tão longe de mim quanto a bela Aldebarã. Ele que, tal qual a grande estrela, ilumina minhas noites e some nas manhãs. Respire! Alivie-se desses suores frios, porque eu não vou rasgar suas roupas, tão bem tecidas nos teares da mentira. Desnudo-te no pensamento apenas, e te aponto o dedo sob a acusação de minha ruína. Respire. Eu sou eu apenas dentro de mim. Escondo-me, como você também o faz.

Podemos conversar calmarias e passear pelos argumentos comuns, pelas falas de elevador. Eu serei teu conhecido de olhar vazio, de onde tudo ainda se espera. Você será minha caixa de pandora, ainda lacrada. Podemos trocar de novo os primeiros olhares, mas dessa vez sem cortesia de segundas intenções, então daremos uma segunda chance à monotonia e à indiferença. Não se condene. Aceite.

Vou tentar te transformar no livro que ainda não li e que não tenho intenção de ler. Se por acaso eu não conseguir, serei traça faminta nos corredores da biblioteca de você que construí nas madrugadas. Faminta e estúpida, devorando algumas míseras folhas dos volumes infinitos, acreditando que um dia deixarei vazias as estantes.

Deixe-me cá dentro de mim, limpando a passagem do furacão. Esse vento forte que me derrubou as flores da sacada e a vidraria do armário. Vento que agora te visita no silêncio, por trás do que você me mostra. Posso escutá-lo em você, barulhento, ecoando como no fundo de um poço escuro. Deixe-me te alertar que uma hora ele vai embora e te deixa na desordem. É doença, talvez, que sempre se passa adiante. Eu poderia esperar que ele se fosse de você, que te quebrasse a pose e a máscara, que dilacerasse sua polidez e dobrasse em quatro nossa distância. Eu poderia voltar amanhã e te ver de páginas abertas, como antes, tão devastada quanto eu, mas não. Amanhã sou casa arrumada, biblioteca vazia, de portas abertas para outra tempestade.

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